Nos primeiros treinos na nova função, ex-judoca faz hora extra, passa técnicas de chão para antigos companheiros e se mantém ao lado da ‘segunda família’
Flávio Canto repete o mesmo movimento duas, quatro, seis vezes e depois observa o esforço de seus alunos com um sorriso contido. Orienta um, dá dicas a outro, e circula pelo tatame inquieto, à procura de algum detalhe que lhe esteja escapando. A aula, que teve início às 15h30m de uma terça-feira de muita chuva em São Paulo, deveria terminar às 17h30m, mas se prolonga por mais uma hora depois do previsto, apesar das goteiras no dojô do Complexo do Ibirapuera. Alguns alunos, porém, pedem mais, e o professor se anima. Explica cada passo novamente, debate técnicas e escuta por mais trinta minutos. Sem o menor sinal de cansaço.
Flávio Canto agora treina os antigos companheiros de seleção.
Após anunciar sua aposentadoria das competições, no início deste ano, Flávio Canto sentiu saudades da antiga rotina. Em conversas com a Confederação Brasileira de Judô, procurou um jeito de não se separar daquela que foi sua segunda família por quase 20 anos. Foi chamado para ajudar nos treinamentos das seleções masculina e feminina, para trabalhar aquela que sempre foi sua especialidade: Ne Waza, conjunto de técnicas executadas no solo. Acostumado a dar aulas em seu Instituto Reação, no Rio de Janeiro, o judoca oficializa sua veia de professor diante de uma turma de alunos prodígios, com medalhas em Olimpíadas e Mundiais em seus currículos. A animação, ele diz, é de um principiante.
- Estou animado, curtindo à beça. É um privilégio, eles sempre foram minha segunda família. Inventamos uma maneira de eu continuar aqui, ajudando. É a forma que eu encontrei de me manter perto e de evitar que eu me distanciasse. É como no término de um namoro. Você não termina só com a namorada, mas também perde o contato com a família da namorada, com os amigos dela. Foi essa forma que eu encontrei de continuar junto com eles. E agora estou redescobrindo o judô – disse o novo membro da comissão técnica, que, até quinta-feira, participa dos treinos das categorias 81kg, 90kg, 100kg e + 100kg em São Paulo.
Flávio Canto senta no tatame: técnicas no solo são
especialidade.
Nas últimas semanas, Canto tem dividido seu tempo entre o trabalho de apresentador, a administração do Instituto Reação e os treinos da seleção. “É a minha vida louca”, ele brinca. Por isso, encara cada aula aos antigos companheiros como um intensivo. Considerado um dos melhores judocas no solo, o novo professor tenta passar as técnicas que o levaram a uma carreira de conquistas, como o bronze nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. Tudo sob o olhar atento dos alunos e do técnico Luiz Shinohara. Nas primeiras aulas, Canto tem tentado ser o mais didático possível. Passa a base dos fundamentos, embora saiba que os judocas à sua frente têm uma grande noção de suas técnicas. À sua frente, os antigos companheiros observam com respeito e atenção.
- Nós somos muito amigos. O Leandro (Guilheiro) é meu irmão, com o Luciano (Corrêa) eu passei três ciclos olímpicos. É um grupo muito forte, a nata. Talvez a amizade e o carinho favoreçam o trabalho. E, aqui, ninguém tem vaidade. Eu quero o bem deles. Antes, tinha uma flecha para acertar em busca de uma medalha olímpica. Agora, com eles, são 14. Estou vivendo essa nova experiência.
Até o anúncio da aposentadoria, Guilheiro era o rival de Canto na busca por mais uma participação em Olimpíadas. Com a grande fase do amigo – líder do ranking na categoria até 81kg –, o novo professor viu que não teria forças para buscar a diferença no ranking. Hoje, Guilheiro se aproveita da nova função de Canto para melhorar ainda mais sua técnica antes dos Jogos de Londres.
- Como o Flávio, no solo, não existe igual. É um cara à parte, com uma visão muito própria disso. Ele torna a luta no solo interessante. O que faz o judô interessante para mim é a parte da estratégia, do jogo de xadrez mesmo. Ele era meu companheiro de quarto nas viagens e me passava algumas coisas, mas não seria legal eu pedir dicas naquele momento, porque estávamos na mesma categoria. Mas, como já está do outro lado, criou um método dele. Para ele, a luta no solo é muito óbvia, e agora ele vai passar isso para todos nós.
Flávio Canto põe a mão na massa para ensinar sobre Ne Waza.
Técnico principal da seleção masculina, Shinohara diz que a seleção deve aproveitar a presença de Canto para tentar aprimorar uma parte técnica que, antes, não recebia um trabalho específico. E o treinador acredita que os treinos já farão a diferença nos Jogos de Londres.
Flávio observa os judocas ao lado do treinador Luiz
Shinohara.
- Os atletas têm de aproveitar isso, sugar esses ensinamentos. O Flávio elaborou um treinamento de fundamentos, com muitos exercícios, a base da luta de chão mesmo. E a evolução é muito grande.
No novo trabalho, Canto tenta implantar uma mentalidade de ataque na seleção. Como o judô brasileiro é tradicionalmente mais forte na luta em pé, a técnica no chão era vista mais como uma defesa depois da queda. O professor tenta mudar essa característica e vai usar vídeos dos treinos para melhorar as técnicas dos judocas da seleção.
Mas, para Canto, o cargo de técnico na seleção é a sua redescoberta do judô. Após lidar com uma série de lesões no fim da carreira, o judoca diz que a nova função fez com que ele parasse de associar os tatames com as dores que sentia nas lutas.
- Quando me aposentei, tive muita dificuldade em mudar minha rotina de treinos, com essa parte de “destreinar”, de diminuir a intensidade para não ter nenhum problema de saúde. E, agora, estou redescobrindo o judô. Passei por quatro operações, lidei muito com a dor. Estou recuperando o prazer de treinar.
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