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domingo, 17 de março de 2019

Um dia após nova coleta de digitais para futuros exames, mulher que se identificava como homem é velada

Material genético da vítima ficará à disposição da Justiça caso alguma pessoa afirme ser parente. Velório ocorre na casa onde Lourival morou por mais de 40 anos em MS.


Um dia após a coleta de novas digitais em Lourival Bezerra de Sá, de 78 anos, a mulher que se identificava com o gênero masculino, o corpo foi liberado e a família pôde fazer o velório e enterro. O impasse acabou após pouco mais de cinco meses, com pedido movido pela cuidadora e um filho da vítima. A decisão na Justiça saiu há 4 dias.
morte natural foi diagnosticada no dia 5 de outubro do ano anterior. Na ocasião, a vítima foi encaminhada ao Serviço de Verificação de Óbito (SVO) e, em seguida, para o Instituto de Medicina e Odontologia Legal (Imol). É lá que foi constatado que se tratava de uma pessoa de outro sexo, o boletim de ocorrência mudou a tipificação e a polícia passou a atuar para desvendar a real identidade desta pessoa.
Durante todo este período, a investigação ressalta que a questão em torno da morte de Lourival não é a identidade que ele escolheu ter, mas, sim a documentação necessária para os trâmites legais após a morte:
"Alguém nasceu biologicamente mulher e não morreu. Para a polícia, a questão de gênero não é o que se discute, mas precisamos saber quem é esta pessoa. Ele viveu como Lourival e para que seja enterrado desta forma, precisamos saber como ele nasceu, quem foi e qual a razão para não documentar a identidade que escolheu", explicou na ocasião a delegada Christiane Grossi, responsável pelo caso.
Laudo de atendimento médico de  Lourival Bezerra de Sá. — Foto: Polícia Civil/DivulgaçãoLaudo de atendimento médico de  Lourival Bezerra de Sá. — Foto: Polícia Civil/Divulgação
Laudo de atendimento médico de Lourival Bezerra de Sá. — Foto: Polícia Civil/Divulgação

Documentos com dados falsos

A pessoa que viveu por mais de 40 anos com aparência masculina em diversas cidades e, por último, na capital sul-mato-grossense, registrou seis filhos com documento emitido de forma correta, porém com dados falsos, de acordo com a polícia. Segundo a delegada, a liberação do corpo só será possível com o fim do mistério em torno de sua história real, porque nem Lourival Bezerra de Sá, nem Enedina Maria de Jesus, têm documentos verdadeiros. Ele não tinha qualquer registro de nascimento:
"Pode ser um caso de identidade de gênero diversa do sexo biológico, no entanto, a investigação não pode se fechar somente nessa vertente, pretende também levantar a possibilidade dele estar fingindo uma identidade masculina para esconder alguma situação, questão de trabalho ou algum crime, por exemplo. A gente não sabe, ainda, a origem destas crianças [filhos de Lourival] que foram registradas de forma equivocada. A pessoa não pode, simplesmente, acordar e dizer: 'Agora sou Lourival' e sair por aí praticando atos da vida civil como Lourival, existe uma questão legal que precisa ser observada e isso vale para qualquer cidadão", explicou Grossi.
Segundo as investigações, nenhum dos filhos sabia que o pai era, biologicamente, mulher: "Ele era uma pessoa que não frequentava nem o médico, trancava portas para ir ao banheiro, e nem sequer dentro da família, alguém sabia dessa situação. Só poucos dias antes de morrer é que tudo foi descoberto pela cuidadora, que recebia para cuidar dele, eles não mantinham um relacionamento amoroso", ressaltou a delegada.
Lourival Bezerra de Sá, a mulher e os filhos — Foto: Reprodução/TV GloboLourival Bezerra de Sá, a mulher e os filhos — Foto: Reprodução/TV Globo
Lourival Bezerra de Sá, a mulher e os filhos — Foto: Reprodução/TV Globo

Para a delegada, o fato de Lourival jamais querer legalizar a identidade que escolheu, diz algo sobre seu interesse em esconder quem ele realmente era. Nos locais em que apontou ter nascido, em Alagoas e Pernambuco, não há registros de nascimento nem de batismo em nome de Enedina Maria de Jesus.
"Antigamente, não existia tanta formalidade para o registro de nascimento das pessoas. Hoje em dia, a pessoa já sai da maternidade com a certidão de nascimento. Então, ele não escolheu uma identidade diversa do gênero, ele criou um personagem. Alguém nasceu biologicamente mulher e não morreu, por isso o corpo está lá e não está sendo identificado. É uma questão legal, um mistério que precisa ser desvendado para que os trâmites sejam encerrados", argumentou a delegada.

A história de Lourival

Para entender a história de Lourival é preciso voltar 50 anos no tempo e a primeira parada é em Goiânia (GO). Foi na cidade que ele conheceu a primeira companheira, Maria Olina de Souza Apollo. Com ela, Lourival registrou quatro filhos. De Goiânia, o casal mudou-se para Ituverava, no interior de São Paulo. Lourival e Maria Olina se separam, e ele seguiu sozinho para Cuiabá (MT).
Segundo a delegada Grossi, nesse período ele conheceu a cuidadora, e juntos, mudaram-se para Campo Grande. Na capital de MS, Lourival trabalhou como pintor de paredes, corretor de imóveis e chegou a abrir uma empresa. Ele também era médium em um centro espírita. Ele e a cuidadora viveram juntos por quase 40 anos, e criaram os 2 filhos. À reportagem, a cuidadora preferiu não dar declarações sobre o assunto.
A vizinha e amiga da cuidadora, Ivaldirene Monteiro dos Santos, disse que ela chegou a comentar que quando Lourival já estava doente, tentou dar banho nele por diversas vezes, mas ele não aceitava. Quando concordou, ela encontrou uma faixa amarrada aos seios de Lourival.

Exames feitos no corpo de Lourival, pelo Imol, em Campo Grande, apontam que foram encontradas lesões na pele, na região das mamas, que são compatíveis e característicos de que ele usava faixas ou outras roupas apertadas com o objetivo de disfarçar a presença das mamas. Muito reservado e mesmo com problemas de saúde, Lourival não gostava de médicos. Ele também evitava usar shorts ou camisetas e só tomava banho de portas fechadas.
“Lourival tomava muito cuidado pra não ser visto nu, tanto que para tomar banho ele trancava a porta do quarto e trancava a porta do banheiro. Para dormir, ele dormia de calça e de cinto muito apertado”, diz a delegada que investiga o caso.

Onde nasceu Lourival?

Lourival dizia para vizinhos e amigos que era de Palmeira dos Índios, município de Alagoas. Mas dias antes de morrer ele afirmou a cuidadora que sua verdadeira identidade seria a de Enedina Maria de Jesus. Ele também passou os nomes dos pais, que seriam Cícero Gomes da Silva e Tertuliana Maria de Jesus e ainda dos irmãos: José Gomes da Silva, Antonio Gomes da Silva, Sebastião Gomes da Silva, Juvenal Gomes da Silva e Gersina Maria de Jesus.
Lourival revelou ainda que teria nascido em Bom Conselho, interior de Pernambuco e não em Alagoas. A delegada diz que a esperança é que com base nessas informações se localize algum parente de Lourival, para que esses familiares possam dar um novo rumo a investigação. A reportagem consultou os cartórios das duas cidades, mas nos arquivos não há registro de nenhuma Enedina Maria de Jesus. Nas igrejas, nenhuma criança com esse nome foi batizada.
Um detalhe importante é que Lourival dizia ter perdido os principais documentos, que trazem informações sobre filiação ou qualquer outro tipo de dado sobre sua origem. Sobrou apenas um CPF no nome dele.

Outra questão levantada durante a investigação policial é sobre os filhos de Lourival. A polícia quer saber como ele conseguiu registrar as crianças e quem são os pais verdadeiros dos filhos que ele criou com a primeira companheira, Maria Olina.
Uma das filhas dele, Glaydiany Apollo de Sá, que mora em Caldas Novas, Goiás, diz que a história é muito complicada para a família entender.
"Enquanto filha, muito difícil, uma história muito complicada, porque até então, cresci achando que meu pai chamava Lourival, tá lá como pai, aí quando faleceu, era uma mulher. Ou seja, então, eu não tenho pai, eu não tenho mãe. Aí estamos aguardando o resultado de um DNA pra saber se um de nós somos filhos da Lourival Bezerra de Sá, como mulher, que pode ser mãe, né, e também da Maria Olinda”, diz.
A família de Lourival também aguarda ansiosamente um esclarecimento sobre o caso. “Ela também deve ter uma história, ter um nome, é uma pessoa. Se cometeu algum erro ou não, não pode ser enterrada como indigente. Eu não desejo isso pra ela”, falou em entrevista Glaydiany.

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