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sexta-feira, 24 de agosto de 2018

'A dor da impunidade é enorme', diz mãe de Davi Gabriel, vítima mais jovem entre os 19 mortos na tragédia de Mar Grande

Garotinho tinha apenas seis meses quando embarcou com a mãe, a avó e a irmã de 4 anos. Lancha naufragou no dia 24 de agosto de 2017, quando iniciava o percurso pela Baía de Todos-os-Santos em direção a Salvador.


Quando o segundo filho da dona de casa Ana Paula Monteiro, 29 anos, nasceu, ela se dedicou a aprender a fazer bolos para celebrar a vida do garoto. Cada festa que preparava mensalmente servia de ensaio para o tão esperado aniversário de um ano de Davi Gabriel.
Os planos da dona de casa, no entanto, foram interrompidos na manhã do dia 24 de agosto de 2017. Ela, a mãe e os dois filhos estavam entre os 120 passageiros que embarcaram na lancha Cavalo Marinho I, que naufragou minutos após deixar o terminal marítimo de Mar Grande, localidade do município baiano de Vera Cruz, margeado pela Baía de Todos-os-Santos. Dezenove pessoas morrreram na tragédia.
"Eu achei que seria uma viagem tranquila. Cada um viveu seu filme de terror ali na lancha"
Naquele dia, Ana Paula acordou cedo para levar Davi em uma consulta médica no Hospital Martagão Gesteira, em Salvador. Há algum tempo, o menino apresentava um problema de pele. Ele tinha sido medicado em Mar Grande, onde a família morava, e já apresentava melhora, mas ela achou prudente procurar um dermatologista na capital.
Davi Gabriel foi uma das 19 vítimas do naufrágio da lancha Cavalo Marinho I (Foto: Reprodução / TV Bahia)Davi Gabriel foi uma das 19 vítimas do naufrágio da lancha Cavalo Marinho I (Foto: Reprodução / TV Bahia)
Davi Gabriel foi uma das 19 vítimas do naufrágio da lancha Cavalo Marinho I (Foto: Reprodução / TV Bahia)
Acompanhada da mãe e de Milena, a filha mais velha, de quatro anos, Ana Paula embarcou na Cavalo Marinho I. Quando entrou, a quantidade de pessoas que haviam embarcado era tamanha que ela teve dificuldade para encontrar um lugar para sentar e acomodar os filhos e a mãe.
Um passageiro que já estava sentado, ao vê-la com Davi nos braços, ofereceu o lugar. Outro, mais à frente, também cedeu a cadeira à mãe de Ana Paula. Milena foi acomodada entre duas outras pessoas ao lado dela, e a embarcação seguiu viagem.
O tempo estava fechado naquela manhã e a maré estava mais revolta que o normal. Acostumada a fazer a travessia, a família de Ana Paula não se amedrontou. Pouco tempo depois do embarque, no entanto, um barulho assustou Ana Paula.
“Era como se a estrutura do barco estivesse quebrando”
No mesmo instante, ela sentiu o barco virar nas suas costas, abraçou Davi sobre o peito e tentou alcançar a mão de Milena, sem sucesso. Uma pessoa que estava à sua frente se desequilibrou e caiu na direção da dona de casa. Neste momento, ela e outros passageiros foram arremessados ao mar.

Resgate

Os instantes que se seguiram após o tombo da embarcação aparecem, na memória de Ana Paula, como um pesadelo. Quando conseguiu vir à tona no mar, já não conseguia avistar a mãe, nem os filhos. Ao seu redor, pessoas feridas gritavam por socorro. Quando, finalmente, encontrou a mãe, as duas se abraçaram e começaram a rezar.
“A gente ficou uma hora à deriva, no meio do mar revolto, com as tábuas da lancha batendo nas nossas costas. Quando o socorro chegou, eu não queria sair sem meus filhos”
Embarcação ficou destruída depois de virar (Foto: Afonso Santana/Arquivo pessoal)Embarcação ficou destruída depois de virar (Foto: Afonso Santana/Arquivo pessoal)
Embarcação ficou destruída depois de virar (Foto: Afonso Santana/Arquivo pessoal)
Ana Paula, a mãe e outros passageiros que conseguiram ser resgatados foram levados para Mar Grande. Ao chegar em terra firme, ela foi levada para a casa da avó. Sem notícias dos filhos, ela sequer conseguia falar, tamanho o desespero.
“Parecia que minha cabeça não estava no lugar. Quando eu cheguei, eu corria de um lado para o outro, desesperada, sem notícias”
Quase duas horas depois de resgatada, Ana Paula recebeu a notícia de que uma menina de quatro anos tinha sido resgatada com vida e levada para Salvador.
“Foi um milagre. Meu coração se encheu de alegria e esperança quando recebi a notícia de que Milena estava viva. Deus cuidou da minha filha, só faltava meu filho"
Ana Paula continuou na casa da avó aguardando por notícias quando viu, pela televisão, a imagem de um menino sendo resgatado. Naquele momento, ela teve certeza: era Davi Gabriel.
Vítimas são resgatadas na praia do Duro, em Vera Cruz (Foto: Luís Paulo / Arquivo Pessoal)Vítimas são resgatadas na praia do Duro, em Vera Cruz (Foto: Luís Paulo / Arquivo Pessoal)
Vítimas são resgatadas na praia do Duro, em Vera Cruz (Foto: Luís Paulo / Arquivo Pessoal)
"Eu vi pela televisão que ele, Davi, estava morto. Minha vida virou de cabeça pra baixo ali, quando vi aquela imagem”
O laudo aponta, ainda, que a criança ingeriu grande quantidade de sua substância tóxica, que Ana Paula acredita ter sido o óleo do motor da embarcação. O garoto foi velado e sepultado em Mar Grande no dia seguinte ao naufrágio.

O adeus

Ana Paula não teve forças para dar o último adeus ao filho.
“Davi ainda mamava. Imagine seu peito continuar enchendo de leite e seu filho ali, dentro do caixão? Foi duro ter que tomar remédio para o leite secar”
Davi Gabriel foi enterrado sob forte comoção (Foto: Maiana Belo/ G1)Davi Gabriel foi enterrado sob forte comoção (Foto: Maiana Belo/ G1)
Davi Gabriel foi enterrado sob forte comoção (Foto: Maiana Belo/ G1)
Os dias após a morte de Davi foram de tristeza profunda para toda a família do garoto. Conviver com a ausência do menino foi tão duro para Ana Paula que ela, o marido e a filha deixaram a casa onde moravam, em Mar Grande, e se mudaram para outra residência, em uma rua distante.
“Mudamos de casa por causa das lembranças. Eu não conseguia nem passar pela frente. Eu não faço terapia, não vou para psicólogo. Tenho buscado o apoio de Deus, ele é meu refúgio”.
Ana Paula também evita passar próximo ao terminal marítimo. Quando precisa ir a Salvador, ela opta pelo ferry boat: “E nunca embarco sozinha. Viajo sem nem olhar para o mar. É muito revoltante”.
A revolta à qual Ana Paula se refere é a causada pela sensação de impunidade. “Já se passou um ano e nada foi feito. Eu nasci na ilha e nunca vi nenhuma melhoria, outras famílias continuam entrando nas embarcações, correndo o mesmo o mesmo risco que eu corri. Aquela tragédia acabou com a nossa vida, interrompeu a vida do meu filho”, lamentou.
"Eu tenho que lidar diariamente com a dor da perda, mas a dor da impunidade é enorme também"
Resgate de vítimas em Mar Grande, Bahia (Foto: Graer/ divulgação)Resgate de vítimas em Mar Grande, Bahia (Foto: Graer/ divulgação)
Resgate de vítimas em Mar Grande, Bahia (Foto: Graer/ divulgação)
Ela requereu na Justiça indenização por danos morais. Atualmente, 43 ações iguais a da dona de casa já foram ajuizadas via Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA). Tramitam, ainda, outras ações impetradas por advogados particulares. Até então, os donos da CL Transportes Marítimos, proprietária da Cavalo Marinho I, não procuraram individualmente nenhuma das famílias das vítimas da tragédia para qualquer esclarecimento, segundo a Defensoria.
Além dos pedidos de indenização, via Defensoria Pública, outras diversas ações foram ajuizadas em 2007 e 2014 -- antes mesmo da tragédia --, pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) para denunciar irregularidades no transporte de passageiros nas embarcações que fazem a trajeto Salvador-Mar Grande. No âmbito criminal, o inquérito policial que investiga as causas e os culpados pelo acidente ainda está em fase de conclusão.
O descaso da empresa com a família e a demora para a punição dos culpados, para Ana Paula, dói tanto quanto a perda do filho caçula. Enquanto aguarda que a justiça seja feita, ela se dedica a transformar o hobby que aprendeu para comemorar a vida do filho em profissão. Faz bolos de aniversário por encomenda. “Em cada bolo que faço, eu lembro do meu filho e agradeço a Deus por ter me dado esse talento”, conta.
A mãe, ferida pela tragédia, imagina, saudosa, como estaria o filho hoje, se tivesse vivo:
“Eu fico pensando como seria a vozinha dele. Milena me diz que Davi virou um anjo e isso me consola”

Sem resposta

G1 tentou contato com a empresa, diversas vezes, por diferentes números telefônicos, entre o final de julho e início de agosto, e não conseguiu tratar com nenhum dos representantes até a publicação desta reportagem.
No dia 6 agosto, durante audiência pública com os familiares das vítimas, os advogados da CL Transporte Marítimo, que não quiseram se identificar, informaram que não se pronunciariam sobre o assunto. O advogado da empresa, por telefone, também se recusou a se posicionar sobre a tragédia, sobre o andamento dos processos e assistência às vítimas.
No site oficial da empresa, uma nota informando sobre o ocorrido foi postada no dia do acidente. Na publicação, a empresa presta solidariedade às vítimas e afirma que está disponível para oferecer assistência aos envolvidos na tragédia. Na nota, a CL disponibiliza um número de contato direto com a empresa. A reportagem entrou em contato com o número, mas uma mensagem da operadora informava que o telefone estava fora da área de cobertura.
No perfil do Facebook da CL, a empresa mostra imagens de atendimentos oferecidos a familiares de algumas das vítimas e disponibiliza um número de contato direto com a empresa. Nas postagens, também é oferecido um contato mas, assim como o número disponibilizado na nota, o contato também estava fora de área.
Página da CL Transporte Marítimo mostra imagens de atendimentos a vítimas da tragédia (Foto: Rede Social)Página da CL Transporte Marítimo mostra imagens de atendimentos a vítimas da tragédia (Foto: Rede Social)
Página da CL Transporte Marítimo mostra imagens de atendimentos a vítimas da tragédia (Foto: Rede Social)

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